quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Anjo Negro

Uma velha cruz de pau ferro,
Bem junto a um capão de mato...
De braços abertos pra vida,
Sem uma circunscrição,
Sem uma data de partida,
Pois quem ali descansava...
Era alguém que nos cuidava,
Desde o tempo da escravidão.

Tia Negrinha, pra gurizada;
Negra véia pra os antigos...
Mas, hoje, ainda me lembro,
Seu ranchinho de leiva e taquara,
Coberto de Santa-fé...
Uma portinha pequena,
Um fogão feito de barro,
Ao fundo um catre de couro,
Com roupas brancas, alvinhas,
E as panelas pareciam espelhos,
Areadas à pedra e sol...
E mais na frente à Santinha.

Era somente uma peça...
Não havia quarto, nem cozinha,
Mas ela não vivia sozinha,
Dizia com sorriso largo:
- Quem está com a Virgem Maria,
E tem fé no Menino Jesus...
Talvez sofra pra carregar a Cruz,
Mas não morre de solidão!

Foi ela que nos ensinou...
(Mesmo sem ler ou escrever),
O poder de uma oração.
Quando juntava as mãos,
Fechada dentro de si,
Parecia que vinham luzes do céu,
E ela envolta em seu véu,
Tão alvo, mais alvo ficava,
Como se alguém lhe falasse,
E ela só agradecia.

Ás vezes eu me perguntava:
- O que tinha para agradecer?
Se aquele modo de viver,
Tamanha era a sua pobreza,
Mal tinha um pão na mesa,
Mal tinha um prato de bóia,
E os anos todos que sofrera,
Com a maldita da escravidão,
Mas ela dizia que o perdão,
Era o alimento pra alma.

Na infância eu nunca entendi,
Só com o tempo pude compreender,
Que existem anjos entre nós...
Porque se isso não for verdade,
Como é que a gente explica,
A doçura da tia Negrinha?
De onde ela tirava palavras tão belas?
De onde ela tirava aquele sorriso de luz?
E as orações que fazia?...

Chás, compressas, benzeduras,
Parteando filhos alheios...
E na solicitude dos outros,
(Até estranhos que fossem),
Estava sempre de prontidão;
E saia pelos campos...
Cruzando sangas, matos e peraus,
Contrita em suas orações,
Para levar uma palavra bendita,
Acalentando as almas sofridas.
Que se perdem ao mundo pagão.

E nos dias de tormenta...
Que varriam campos e matos,
Com raios rasgando o céu,
Derrubando casas inteiras,
E a dela tão pobrezinha,
Parece até que se embalava,
Mas nas orações da Tia Negrinha,
Ali a tormenta não vinha,
E ela, na sua fé, sozinha,
Entre cruzes de sal, abençoava.
  
Um dia tia Negrinha foi embora;
E eu não estava aqui para vê-la,
Mas, se quem morre vira estrela,
Sei que é ela que me ilumina,
E até hoje ainda me ensina...
As lições que eu não entendia,
Todos nós vamos partir um dia,
Sem um Adeus de despedida,
Deixando uma cruz solitária,
Com a data fria da partida.

Só, hoje, eu pude entender,
A velha cruz sem data...
Se a lápide fria retrata,
O tempo que aqui passamos,
É porque somos simples humanos,
E o humano nasce e morre;
Tia Negrinha era diferente,
Na forma mais terna de um ser,
Pra que possamos compreender,
Que a vida não é só riqueza,
E num ser, há mais que beleza,
Há coisas que os olhos não veem!

Tia Negrinha era diferente,
Só, hoje, eu pude entender,
Era um anjo junto da gente,

E anjo...anjo não pode morrer!

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