sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Na Sombra de uma Carreta!

Ney Moreira da Silva e Paulo Ricardo Costa
Foi numa sombra de carreta,
Que este Rio Grande se ergueu,
Num tempo que se perdeu...
Por entre a poeira e a distância,
Quando o sonho e a esperança,
Pareciam, até, serem reais,
Os Homens tinham ideais,
Na fé que vinha de herança.

No silêncio de uma estrada,
Num coxilhão, descampado,
O rangido triste e marcado...
Era como um grito de alerta,
De uma Pátria que desperta,
De um sono de retrocesso,
Ponteando notas ao progresso,
E para memória dos poetas.

Quatro juntas afinadas...
Desde o coice até a ponta,
E um sonho tomando conta,
Nas mãos férteis do carpinteiro,
Varilha, mata-bois e o fueiro,
Mesa, seva e o assoalho...
Chavelha, muchacho e cabeçalho,
E um sonho de carreteiro.

Um toldo, feito a capricho...
Para os invernos terrunhos,
Desenhado de próprio punho,
Coisas que a vida ensina...
Cambota, raios e buzina,
Rodados, cheda e cambão,
São partes de um carretão,
As tábuas de madeira fina.

Canga leve e bem feita,
Quatro canzis de primeira,
Ajoujo, brocha e rejeira,
Aspas de lua minguante,
E a carreta vai adiante...
Vergando os sulcos da terra,
Bombeando campos taperas,
Na solidão de um andante.
  
Por anos foi deste jeito,
Levando bóia pra o povo,
Só de lembrar, me comovo,
Daquela imagem que não sai,
E até uma lágrima me trai...
Cortando a fios de navalha,
Bombacha rota, chapéu de palha,
E um sorriso do meu Pai.

E sempre que ele voltava...
A carreta nunca vinha vazia,
Nos seus olhos a alegria,
Deste mundo que ele quis,
Nos meus sonhos de aprendiz,
Já me via um carreteiro...
Levando ao mundo povoeiro,
Nosso jeito de ser feliz.

Mas, um dia veio o progresso...
Rugindo a berro de motor,
E o carreteiro perdeu o valor,
Nesta ganância desenfreada,
Já não haviam mais pousadas,
Pelo silenciar das sarjetas,
E nem sombras de carretas,
Pelo beiral das estradas.

O mundo, hoje, tem pressa,
E os bois tranqueiam lentos...
O Homem já não tem tempo,
Com suas máquinas potentes,
Lembram-se do que é presente,
Vivendo o mundo agitado,
Como se os tempos passados...
Não importassem pra gente.

Pra muitos, não restaram nada,
Vagando diante as cancelas...
Ou pelas toscas favelas,
Na parte fétida das cidades,
Na mais cruel desigualdade,
Que separa, seres iguais...
Vivendo pior que animais,
Frente aos olhos da sociedade.

E o “marimbondo” da picana,
Hoje, me crava o coração,
Com a dor do seu ferrão,
Nesta saudade que afago,
Vivendo longe do pago...
Quando rebusco os sentidos,
Ainda escuto um rangido...
Pelas lembranças que trago.

Àquele sonho de carreteiro,
Que pelo tempo se foi...
Restou-me a sina dos bois,
Diante de grades e cimentos,
Ajoujando ressentimentos...
Com os mesmos olhos de bicho,
Comendo as sobras do lixo...
E mendigando o meu sustento.

É assim que, hoje, me encontro,
Excluso ao mundo que fiz...
Sou mais um ser, infeliz...
Sem teto, sem casa, sem chão,
Vertendo sangue das mãos,
Junto ao esgoto, das sarjetas,
Numa sombra de carreta...

Carregada de papelão.

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